CLONAGEM HUMANA
      O ponto de vista de um psicanalista sobre um recente parecer da Comissão Nacional Consultiva de Ética (França).

"DO MAL-ESTAR À CONFUSÃO"
por Gérard Huber

 

 

     A conclusão do Parecer 54 indica que a Comissão Consultiva Nacional de Ética (CNNE) não está muito segura de si quando afirma "a distinção fundamental que deve ser estabelecida entre a clonagem não reprodutiva de células humanas, incapazes de gerar por si só seres humanos (...) e a clonagem reprodutiva destinada ao nascimento de uma criança".

    Querendo ao mesmo tempo condenar a clonagem que leva ao nascimento de uma criança e salvaguardar as técnicas tradicionais da clonagem, a Comissão opõe uma técnica que considera reprodutiva a uma outra que não o seria. Admira-nos que a CNNE chegue a tal conclusão, uma vez que, ao longo de todo o relatório que produziu, se fala da natureza intrinsecamente reprodutiva de qualquer tipo de clonagem e do seu interesse estritamente terapêutico. Percebe-se mesmo o tamanho do seu embaraço quando chama "não reprodutiva" à clonagem de que é partidária...
    Tal confusão não deixou indiferentes os "bioéticos". A partir desta data impôs-se uma outra distinção. Com efeito, admitiu-se que existisse uma forma de clonagem que podia não ser considerada nem "reprodutiva" nem "não reprodutiva" e a que se chamaria "clonagem terapêutica". Doravante, a controvérsia passaria a opor os partidários da "clonagem terapêutica" (em ordem a reproduzir células incapazes de gerar só por si seres humanos) aos partidários da "clonagem reprodutiva" (em ordem ao nascimento de uma criança).
    De qualquer modo, a reprodução de elementos do ser humano vivo continua a estar na base de todo o tipo de clonagem, mesmo da "clonagem terapêutica". É evidente que esta nova denominação apenas oculta o mal-estar expresso no Parecer atrás citado.

    De qualquer modo, a reprodução de elementos do ser humano vivo continua a estar na base de todo o tipo de clonagem, mesmo da "clonagem terapêutica". É evidente que esta nova denominação apenas oculta o mal-estar expresso no Parecer atrás citado."O gruo considera eticamente inaceitável a criação de embriões a partir de dons de gâmetas em ordem à obtenção de células embrionárias, uma vez que os embriões supranumerários representam uma fonte alternativa disponível. Seria prematuro criar embriões por transferência de células somáticas para resolver necessidades de investigação sobre a terapia".

Utilizar embriões "supranumerários" com uma intenção terapêutica manifesta a mesma intenção eugenista que produzi-los com esse objectivo

    O mal-estar reside, pois, não só na incapacidade de dizer que toda a clonagem é reprodutiva mas, e principalmente, na de estabelecer uma distinção clara entre as três intenções que presidem à clonagem:
1ª a intenção terapêutica, que aceita a actual clonagem de células ou de órgãos adultos, na perspectiva de um implante;
2ª a intenção oportunista, que admite a possibilidade de se obterem células embrionárias a partir de embriões já constituídos, no âmbito de uma assist~encoa médica á procriação;
3ª a intenção eugénica, que cria e faz clonagem indiscriminada de embriões, quer para os utilizar como "utensílios", quer para os fazer viver como "clones".
    Agora que foram eliminados os falsos debates, se admitiu que o eugenismo contemporâneo não tem nada a ver com o eugenismo da época precedente - uma vez que aquele intervém antes e este intervinha após o nascimento - e foram varridas as referências à aniquilação pela eutanásia (referências que permitiam considerar o aborto como um acto de aniquilação), pode-se compreender que biólogos e médicos contemporâneos se deixem embalar pelo desejo de purificar o Homem, que apostem num pretenso aperfeiçoamento da espécie humana e que a lei faça bem em se lhes opor.
    Tudo é claro quando sabemos que James Watson, Prémio Nobel, afirmou: "Será preciso que alguns tenham a coragem de intervir na herança genética mesmo sem ter a certeza do resultado. Aliás, e ninguém o ousa dizer, se pudéssemos vir a criar seres humanos melhores, graças à adição de genes provenientes da plantas ou de animais, porque nos havíamos de privar disso? Qual é o problema?"
    Também é claro quando se vê Michael West, presidente da Geron Corporation, insistir no interesse de se multiplicarem os meios de criação de embriões humanos, capazes de fornecer células embrionárias, propondo mesmo que se utilizem para esse fim óvulos de vacas como incubadoras celulares.
     É ainda claro quando se verifica que esta criação de embriões se confina ao contexto humano, como é, neste momento, o caso da Grã-Bretanha. Com efeito, Michael West e o Parlamento Britânico colocam-se deliberadamente na perspectiva de obter células embrionárias para fazer progredir as terapêuticas, mas tanto uns como outros sabem com toda a pertinência que os investigadores poderiam proceder de outra forma e utilizar outras estratégias. É por isso que os critérios da sua escolha não são científicos nem técnicos mas eugénicos.
   A título de exemplo pela inversa, temos de aceitar a ideia de que a perspectiva eugenista não está ligada à técnica de transferência de núcleo, a qual se identifica sem razão com a clonagem, quando pensamos que não há outra via possível para que as mulheres com doenças mitocondríacas possam ter filhos.
    Contudo, é muito mais difícil argumentar acerca das intenções do que acerca das capacidades técnicas. É mesmo fácil pensar que a intenção inicial importa pouco, desde que se atinja o resultado. Mas a verdade é que tudo se passa ao nível da intenção; é aí que se exprime o mal-estar.
    Neste contexto, utilizar embriões ditos "supranumerários" numa perspectiva terapêutica manifesta, num dado momento, a mesma intenção eugenista que produzi-los com esse objectivo. Daí o seu duplo oportunismo. Na verdade, a diferença é muito ténue; é certo que, num caso, o cientista se arroga o direito de produzir um homem e que, no outro, apenas se aceita o direito de o utilizar. E, ao fim e ao cabo, utilizar o homem no estado embrionário não será apenas o outro extremo da cadeia de sobrevivência que começa por utilizá-lo no estado mortal, quando se trata da colheita de órgãos? Mas comparação não é razão. No caso da utilização de embriões supranumerários, se houver consentimento dos pais, isso significa que a sociedade admite que um casal possa livremente decidir, primeiro, reproduzir-se e, depois, transformar o produto da sua concepção assistida em fonte do órgãos. A menos que a dita sociedade de dispense de obter qualquer consentimento, o que seria uma forma de fazer desabar o consentimento para uma espécie de "dead letter office".
     Este mal-estar e a sua tentativa de resolução numa língua embaraçada e em actos contraditórios exprimem a grande dificuldade de os cientistas, os médicos, o legislador e todos os actores dos campos biomédicos e bioéticos terem ideias claras sobre o que se chama "eugenismo". Neste contexto, nada seria mais grave do que reduzir a ética a um alibi. O alibi é o que permite que se instalem e funcionem falsas solidariedades conceptuais, primeiro na má consciência, depois na negação.
    É muito importante manter um limite entre a perspectiva terapêutica e a perspectiva eugénica, sem o que, com esse ritmo, o debate acabará por opor os que justificam a priori a clonagem de alcance eugénico aos que a justificariam a posteriori.

Gerard Huber
Psicanalista
Autor de L'Homme Dupliqué, L'Archipel, 2000

 

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